1922…

o ano é 1922. o deputado estadual rodrigo terra cambará, bisneto do famoso capitão rodrigo cambará, havia renunciado ao seu mandato ao final de um enérgico discurso em que se pôs na oposição ao então presidente da província do rio grande do sul, antonio augusto borges de medeiros. de volta a santa fé, rodrigo inicia uma campanha política para eleger josé francisco de assis brasil na presidência da província, em lugar de borges de medeiros que queria se reeleger a qualquer custo. a campanha em santa fé foi dura e suja até o dia da eleição que deu vitória esmagadora a borges de medeiros. mais tarde, uma revolução tentaria, à bala e nas coxilhas, o que as urnas não conseguiram.

inquieto com a situação, rodrigo cambará tentou por todos os meios divulgar a candidatura de assis brasil entre os santafesenses. de hábitos extremados, rodrigo lança mão até mesmo do tipógrafo arão stein, comunista convicto, para imprimir O Libertador, panfleto libertário que visava a convencer seus concidadãos das intenções de assis brasil e para tentar neutralizar os violentos ataques pessoais feitos por amintas camacho, dono d´A Voz da Serra e porta-voz do violento intendente de santa fé, laco madruga e seus capangas.

numa noite, entra no porão d´O Sobrado, residência dos cambará, um dos amigos de rodrigo de nome roque bandeira, uma espécie de filósofo local que vivia com o pouco dinheiro que o pai, fazendeiro rico, lhe dava. encontra stein terminando de imprimir o último número d´O Libertador e o provoca:

“- Assalariado da burguesia!

eram amigos. a conversa continua com provocações de ambas as partes. ao final, bandeira diz:

“- Sem remorsos?

O judeu voltou o rosto para o amigo.

Por que havia de ter remorsos?

Ora, Rodrigo vai te dar de presente as armas com que atacarás a classe a que ele pertence…

Stein encolheu os ombros.

Ele sabe. Não escondi as minhas intenções. Deves compreender que o doutor Rodrigo não me leva a sério ou, melhor, a burguesia não nos leva a sério. Acham que estamos brincando.

É nisso que está toda a vantagem de voces: a irresponsabilidade nacional. Oh! somos todos bons moços, nada é sério, ninguém mata ninguém, o país foi descoberto por acaso, a abolição decretada porque a princesa Isabel tinha bom coração, a República proclamada porque enpurraram o Deodoro. Tudo termina em abraços, em Carnaval… porque é sabido que brasileiro tem bom coração…

Stein parecia escutá-lo sem interesse.

Vou te dizer uma coisa, Bandeira. Componho e imprimo estes artigos de jornal e boletins como se tudo fosse literatura infantil, sabes? Contos da carochinha. É por isso que faço este trabalho sem problemas de consciência.

Em suma, todos os meios servem a voces, contanto que levem à ditadura do proletariado, não?

E por que não? ´Um comunista deve estar preparado para fazer todos os sacrifícios e, se necessário, recorrer mesmo a toda espécie de estratagema, usar métodos ilegítimos, esconder a verdade, a fim de penetrar nos sindicatos e permanecer neles, levando avante a obra revolucionária.` Sabes quem disse isto? Lênin.

De sorte que para voces não existe ética nem moral…

Claro que existe. Só que nada tem a ver com a ética e a moral da burguesia. Nossa moral e nossa ética estão a serviço da causa do proletariado, da luta de classes. Em suma, para nós é moral e ético tudo o que nos ajudar a destruir o regime capitalista explorador, a unir o proletariado do mundo e, consequentemente, a criar a sociedade comunista do futuro. Não te parece lógico?

Roque cuspiu fora o toco de cigarro.

Não estou certo disso.

(Érico Verissimo – O tempo e o vento – Parte III, vol. 1 O Arquipélago, Edição comemorativa do Centenário de Érico Verissimo, Cia. das Letras, SP, 2005 )

negrinho

verissimoUm trecho comentado do livro O Tempo e o Vento, parte I, O Continente, vol.2, de Erico Verissimo (os comentários vão em itálico).

Noite de 26 de Junho de 1895.

No quarto do Sobrado, cercado por vários dias pelos homens do velho Bento Amaral, os meninos Toríbio e Rodrigo Cambará pedem a Fandango, capataz do Angico, para lhes contar uma história. Fandango se diz cansado, ao que Toríbio lhe observa:

– “Ué… Tu conta é com a boca, não com a perna. Tua boca também está cansada?”

Fandango, após regatear com os meninos, decide contar a história do Negrinho do Pastoreio.

“….

– ‘Conta!’ – insistem os meninos.

– ‘Está bem, xaroposos! Está bem.

Fandango recosta-se na cama e com a sua voz especial de contar casos, uma voz pausada de conversa ao pé do fogo, começa:

– ‘Era uma vez um estancieiro podre de rico e louco de tão malvado….´

….”

E Fandango conta a história entrecortada por complementos dos dois meninos que já a tinham ouvido dele muitas e muitas outras vezes. Vou omitir os detalhes, pois não são tão importantes assim, exceto a devoção que o Negrinho tinha pela Virgem. Conta-se, no Rio Grande do Sul, que, sempre que alguém perde algo, deve acender uma vela para o Negrinho levá-la para o altar da Virgem. Em troca, ele traz de volta o que se perdeu.

A história vai terminando, quando entra no quarto Maria Valéria, tia dos meninos, com a refeição da noite – gomos de laranja e farinha – o que restou depois de vários dias de cerco do Sobrado pelos maragatos.

“….. 

– ‘Venham comer’ – diz ela – ‘Laranja e farinha. Foi o que se pôde arranjar.’

– ‘Espera, madrinha’ – diz Rodrigo. – ‘O Fandango está contando a história do Negrinho.’

…..

– ‘Já estou no fim, dona.’

…..

– ‘E depois, Fandango?’ – pergunta Rodrigo.

…..

– ‘E ele anda por aí, Fandango?’ – pergunta Rodrigo.

– ‘Diz-que.’

Toríbio fica pensativo por um instante e depois indaga:

– ‘E essa história é de verdade ou de mentira?’

Fandango ergue-se devagarinho, respondendo:

– ‘É uma história linda, chiquito.’

Depois, dirigindo-se a Maria Valéria, murmura:

– ‘Acho que vou acender hoje uma vela pro Negrinho pra ele trazer de volta pra casa o meu neto que se perdeu nessa revolução.’ – Sorri. Fecha um olho. – ‘E pro afilhado da Virgem me devolver outras coisas, muitas outras coisas que tenho perdido nesta vida.’

….”

 verissimo´s signature

Não sei quanto ao leitor amigo, mas eu, que em alguns dias estarei em POA por um breve período, vou acender também uma vela pro Negrinho do Pastoreio, pois ultimamente eu também andei perdendo muita coisa em minha vida… Quem sabe ele acha e as traz de volta!…